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terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Ainda teremos de ‘sim, mas…’ - Tradução do Artigo de Gérard Biard para o Charlie Hebdo feita por Evandro Veloso Gomes

    Faz uma semana que o Charlie, um jornal ateu, realiza mais milagres que todos os santos e profetas juntos. Dos quais somos os mais orgulhos é que vocês tem em mãos o jornal que sempre temos feito, na companhia daqueles que sempre o fizeram. O que mais nos tem feito rir é que os sinos de Notre-Dame soaram em nossa honra…. Faz uma semana que o Charlie levanta pelo mundo bem mais que montanhas. Faz uma semana, como havia adivinhado maravilhosamente Willem, Charlie fez inúmeros novos amigos. Anônimos e celebridades planetárias, humildes e ricos, descrentes e dignatários religiosos, sinceros e jesuítas, amigos que nós guardaremos por uma vida e amigos que estão apenas de passagem. Hoje, nós os levaremos todos, não temos tempos vontade de fazer uma triagem. Nós não somos tão bobos. Nós agradecemos de todo coração, dentre os milhões, quer sejam simples cidadãos ou que encarnem as instituições, que estão verdadeiramente ao nosso lado, que sinceramente e profundamente “são Charlie”. E queremos sinceramente que o resto se foda.
    Uma questão, ainda assim, nos atormenta: será que veremos enfim desaparecer do vocabulário político e intelectual o palavrão “fundamentalista laico”? Será que vão parar de inventar circunvoluções semânticas acadêmicas para qualificar igualmente os assassinos e suas vítimas?
    Nos últimos anos, nós nos sentimos um pouco sós, tentando empurrar com pinceladas a porcaria livre e as sutilezas pseudo intelectuais que nos jogavam na cara, e na cara de nossos amigos que defendiam firmemente a laicidade: islamofóbicos, cristofóbicos, provocadores, irresponsáveis, jogadores de óleo no fogo, racistas, vocês procuraram,… Sim, nós condenamos o terrorismo, mas… Sim, ameaçar de morte os cartunistas, isso não é legal, mas… Nós escutamos tudo, e nossos amigos também. Nós costumamos tentar rir, porque é o que fazemos melhor. Mas nós gostaríamos muito, agora, de rir de outra coisa. Porque agora tudo vai recomeçar. O sangue de Cabu, Charb, Honoré, Tignous, Wolisnki, Elsa Cayat, Bernard Maris, Mustapha Ourrad, Michel  Renaud, Franck Brinsolaro, Fréderic Boisseau, Ahmed Merabet, Clarissa Jean-Philippe, Philippe Braham, Yohan Cohen, Yoav Hattab, François-Michel Saada não tinha nem secado quando Thierry Meyssan explicava no Facebook que se tratava, evidentemente, de um complô judo-americano-ocidental. Nós já escutamos isso, aqui e ali, as finas bocas fazerem beicinho diante do protesto do último domingo babando pelo canto dos lábios os eternos argumentos tentando justificar, abertamente ou baixinho, o terrorismo e o fascismo religioso, e se indignando, entre outros, que se celebrem os policiais = SS. Não, neste massacre, não há mortes menos injustas que outras. Franck, que foi morto no Charlie e todos os seus colegas mortos durante esta semana de barbárie foram mortos por defenderem idéias que, talvez, não fossem nem as suas.
    Nós vamos ainda assim tentar ser otimistas, ainda que não seja o momento. Nós vamos esperar que à partir deste 7 de janeiro de 2015 a defesa firme da laicidade seja óbvia para todo mundo, que enfim termine, pela postura, por cálculo eleitoral ou por covardia, de legitimar ou mesmo tolerar o comunotarismo e o relativismo cultural, que só abre espaço para uma coisa: o totalitarismo religioso. Sim, o conflito Israel e Palestina é uma realidade, sim, a geopolítica internacional é uma sucessão de manobras e de truques sujos, sim, a situação social dos, como se diz “populações de origem muçulmanas” na França é profundamente injusta, sim, o racismo e a discriminação devem ser combatidos sem descanso. Felizmente existem várias ferramentas para tentar resolver estes graves problemas, mas eles são inúteis se faltar uma: a laicidade. Não a laicidade positiva, não a laicidade inclusiva, não a laicidade seja-lá-o-que-for, a laicidade ponto. Só ele permite, porque ela defende o universalismo dos direitos, o exercício da igualdade, da liberdade, da fraternidade, da irmandade. Somente ela permite a plena liberdade de consciência, liberdade, liberdade que negam, mais ou menos abertamente segundo seu posicionamento marqueteiro, todas as religiões desde que elas saíram do terreno da intimidade estrita para descerem à vida política. Somente ela permite, ironicamente, aos que acreditam, e aos demais, de viverem em paz. Todos os que pretendem defenderem os muçulmanos aceitando o discurso totalitário religioso defendem de fato seus executores. As primeiras vítimas do fascismo islâmico são os muçulmanos.
    As milhões de pessoas anônimas, todas as instituições, todos os chefes de estado e de governo, todas as personalidades políticas, intelectuais e midiáticas, todos os dignatários religiosos que, esta semana, proclamaram “Eu sou Charlie“ devem saber que isso também significa “Eu sou a laicidade“. Nós estamos convencidos que, para a maior parte de nossos apoiadores, isso é claro. Nós deixamos os demais irem à merda com isso.
    Uma última coisa, importante. Nós gostaríamos de mandar uma mensagem ao Papa Francisco que, ele também, “é Charlie“ esta semana: nós não aceitaremos que os sinos de Notre-Dame soem em nossa homenagem for o Femen que os fizer vibrar.

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